As empresas e a responsabilidade social: obrigatoriedade, compromisso ou negócio?

Editoria: Vininha F. Carvalho 24/10/2003

Muito embora recente, a responsabilidade social empresarial já se caracteriza no Brasil como uma prática moderna de gestão corporativa. Originariamente assistencialista, o envolvimento das empresas com a área social, um dos itens mais visíveis dessa agenda, começa a ser feito de maneira estratégica e a ganhar a dimensão que tem hoje a partir do final da década de 80 e, com maior ênfase, no início dos anos 90. Talvez a isso possamos atribuir dois equívocos comuns àqueles que não compreendem a razão de as empresas realizarem ações de caráter social. O primeiro é a confusão dessa prática com o cumprimento das obrigações legais e fiscais. O segundo diz respeito à natureza, objetivos, metodologia e avaliação das ações sociais protagonizadas ou financiadas pelas corporações. É preciso que se coloque luz sobre esse debate. Caso contrário teremos, respeitadas lideranças sociais e políticas – presidente, governadores e parlamentares – avalizando esses equívocos.

A verdadeira guinada de comportamento do empresariado nos anos 90 não é obra do acaso ou da vontade divina. Ela decorre de profundas transformações sociopolíticas e do redesenho do mercado brasileiro. No campo social e normativo, o grande marco é a Constituição de 1988. Além do caráter democrático do processo Constituinte, da nossa Carta Maior emanaram leis que revitalizaram a participação da sociedade civil organizada, possibilitaram ao brasileiro ser um cidadão muito mais consciente e exigente e, não menos importante, produziram impactos no mercado brasileiro, como é o caso do Código do Consumidor.

As mudanças no mercado não foram de menor monta. A predominância dos programas de qualidade total, a abertura à concorrência internacional e o processo de privatização das empresas estatais provocaram uma reviravolta na competição pela preferência do consumidor e nas estratégias de negócios das corporações. É nesse cenário que se desenvolve a participação das empresas na área social. Elas estão finalmente se convencendo de que está cada vez mais difícil conciliar os elevados índices de desigualdades sociais brasileiros e os não menos elevados padrões de eficiência exigidos pelos mercados nacional e internacional. Mesmo teóricos importantes da área de economia e de administração de empresas admitem que a ambiência influencia o comportamento empresarial.

Entretanto, empresas não são criadas para serem organizações filantrópicas, especialmente num regime capitalista. A mudança no papel das empresas, que gradativamente vêm agregando à sua função de agente econômico a dimensão social, não pode levar à confusão de que elas abandonarão as características e os objetivos para os quais foram criadas. Fundamentalmente uma empresa é, pela ordem, agente econômico, provedor fiscal e tributário e ator social. Evidentemente esses papéis não são exercidos de forma estanque nem é dado às empresas tergiversar sobre os padrões éticos estabelecidos por uma dada sociedade.

Assim, empresas devem gerar lucro, assegurar sua competitividade e perenidade e dar retorno ao investimento dos seus acionistas ou cotistas. Se não há lucro, não se justifica a empresa. Não se tem a fonte geradora da obrigação fiscal, nem muito menos se justifica a sua ação social.

É justamente da busca do lucro e do aumento da competitividade, respaldados no respeito aos princípios éticos, que nasce essa nova mentalidade empresarial e essa nova estratégia de gestão dos negócios denominada responsabilidade social empresarial. Uma gestão dos negócios socialmente responsável preconiza que não basta promover o crescimento da empresa. É preciso que haja respeito ao desenvolvimento dos seres humanos, dos cidadãos –sejam eles colaboradores diretos, como os funcionários, ou membros da comunidade onde a corporação atua.

Essa nova mentalidade empresarial refuta a cantilena de que, falido o Estado, deve o setor privado substituir as funções sociais a este delegadas pela Constituição, sobretudo a universalização do acesso a serviços básicos de saúde, educação e bem-estar social. Para que haja desenvolvimento sustentável, todos os atores sociais devem assumir seu papel, cumprindo seus compromissos e respeitando os padrões éticos estabelecidos pela coletividade.

Restringir essa nova atitude empresarial simplesmente às suas obrigações fiscais e legais seria cercear o direito da empresa de exercer esse novo papel. Ao contrário do cumprimento das obrigações fiscais e legais, que por sua própria natureza submetem-se à administração do Estado, a responsabilidade social empresarial, por seu caráter privado e de gestão dos negócios, deriva de decisão espontânea das corporações.

Ademais, é bom que se frise, pagar corretamente contribuições, impostos e tributos é um dos elementos que compõem a extensa agenda da responsabilidade social. Entretanto, não se pode resumir à responsabilidade social a isso. Nem muito menos às campanhas de marketing transvestidas de ação social ou atos benemerentes de empresários caridosos condoídos com nossas mazelas sociais.

Neste momento de reformas, é importante que os cidadãos fiquem atentos às nuvens de fumaça que podem encobrir intenções aparentemente honrosas, porém equivocadas. Por exemplo, escamoteação do aumento da carga tributária, estadual ou federal, tendo como pretexto o incentivo (leia-se tornar obrigatórias) às ações de responsabilidade social das corporações. Essas, por essência, devem ser de adoção espontânea e derivar de comprometimento da empresa com a sobrevivência do negócio e com o desenvolvimento social do Brasil.

Caso contrário, corremos o risco de ter muitas ações com qualidade, no mínimo duvidosa, feitas apenas para “cumprir tabela”, por força de lei. Nossa experiência mostra que os projetos sociais realizados ou financiados de forma compromissada, mas não obrigatória, são muito eficientes para a empresa e, sobretudo e mais importante, para a comunidade beneficiada.

Léo Voigt, 44, sociólogo, mestre em Ciência Política pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) é presidente do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas).